Um dos grandes desafios no Terceiro Setor é sustentar a longo prazo um fluxo constante de recursos para financiar ações sociais de impacto. Pesquisas já comprovaram que essa constância e extensão no tempo de um pipeline financeiro faz toda a diferença. A verdadeira e sustentável transformação social só ocorre com a continuidade de ações a longo prazo e a articulação entre diversas ações e iniciativas, em diversas áreas: assistência social, economia, saúde, educação, cidadania, esportes e lazer, cultura…
A filantropia moderna surgiu, na segunda metade do século XIX, nos EUA, por meio de magnatas tornados filantropos como Andrew Carnegie e John D. Rockefeller, quando estes empresários estruturaram fundações com uma estrutura profissional e incutiram nos herdeiros uma cultura de filantropia para que as ações apoiadas por essas fundações fossem mantidas ao longo de décadas, até séculos. O dispositivo criado para garantir isso são os chamados endowment funds.
O que são os endowments?
Chamados no Brasil de fundos patrimoniais, os endowment funds “são fundos de caráter permanente, formados por recursos advindos de doações de pessoas físicas e/ou pessoas jurídicas, os quais são investidos no mercado financeiro (inclusive em fundos de investimento) por gestor profissional, sendo que os rendimentos auferidos são revertidos para projetos relacionados à finalidade social atrelada às doações”, segundo o ótimo artigo do portal Migalhas. Seu objetivo é “assegurar a perenidade no financiamento dos projetos que motivaram as doações, já que somente os rendimentos advindos do investimento no mercado financeiro dos recursos doados serão utilizados para custeá-los. Deste modo, o dinheiro doado em si estará sempre sendo reinvestido para garantir que haja capital suficiente para a continuidade da iniciativa”.
História
Tradicionalmente, estes fundos garantem o pagamento dos professores catedráticos e bolsas de estudos para alunos em situação de vulnerabilidade social, prática que remonta à Antiguidade. Na Grécia e Roma Antigas e no mundo islâmico era costume monarcas e nobres oferecerem bolsa para professores ensinarem nas Academias. A prática se consolidou com a criação das primeiras universidades na Europa e o desenvolvimento da burguesia europeia.
Os endowments foram e são as principais fontes de financiamento das mais importantes universidades do mundo, como Oxford e Cambridge, na Inglaterra, financiadas desde 1502, e Harvard (EUA), que possui o maior fundo educacional do mundo, atualmente estimado em mais de US$ 40 bilhões.
Atualidade
Hoje, os fundos de endowment operam como investidores no mercado de capitais, com um volume de recursos importante para o mercado financeiro. A maior destas charitable foundations é a Novo Nordisk Foundation, da Dinamarca, focada em pesquisas médicas e de saúde, que possui um patrimônio de US$ 49,6 bilhões, segundo dados de 2019. A fundação é dona da empresa farmacêutica Novo Nordisk, e a maior parte de seu financiamento vem de um fundo formado pelos lucros e dividendos da empresa, líder mundial na produção de medicamentos e equipamentos médicos para tratar a diabetes.
A segunda maior fundação é a Bill & Melinda Gates Foundation, criada pelo bilionário fundador da Microsoft, Bill Gates, com um fundo de US$ 46,8 bilhões em 2019, destinados principalmente a programas de saúde, educação e erradicação da pobreza. Outras grandes fundações mantidas com endowments são a Ford Foundation, o J. Paul Getty Fund e a Rockefeller Foundation. Entre as universidades, os maiores fundos, depois de Harvard, são os de Yale, Stanford, Princeton, MIT e Penn State.
No Brasil
O Brasil, infelizmente, é historicamente atrasado em termos de legislação para a criação de endowments. A situação começou a mudar após o incêndio do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, em setembro de 2018. A medida provisória 851/18 estabeleceu as regras específicas para os fundos patrimoniais destinados a uma única instituição ou causa, e foi consolidada com a Lei dos Fundos Patrimoniais (Lei 13.800/19), estabelecendo que esses fundos filantrópicos poderão receber doações que, uma vez investidas no mercado financeiro, usarão seus rendimentos como suporte financeiro para hospitais, universidades, museus e ações socioambientais, entre outros.
Fundações ligadas a bancos e instituições financeiras já são consolidadas em nosso país, mas, com a nova legislação, poderão atuar de fato como players no mercado financeiro, atraindo investidores interessados em retornos consistentes enquanto ajudam a fazer o bem. Um fator que pode desestimular os investimentos nesses fundos é, por eles serem perpétuos, poderem ser inviabilizados a longo prazo devido a processos trabalhistas, previdenciários e fiscais. Outro fator desestimulante é que as doações para estes fundos ainda não possuem incentivos fiscais, e estão sujeitas à mesma taxação das empresas que realizam aplicações financeiras, com uma alíquota de 34%. Vale lembrar que, ao sancionar a Lei 13.800/19, o presidente Jair Bolsonaro vetou o trecho que previa benefícios fiscais aplicáveis à captação de recursos.
Pela legislação brasileira atual, os fundos patrimoniais podem ser destinados a associações já existentes, ou a uma associação criada especialmente para a manutenção do endowment. A lei prevê que os fundos patrimoniais tenham governança guiada pela gestão profissional dos recursos, supervisionada por um comitê, conforme a política de investimento aprovada pela associação ou fundação que o criou.
Em 2020, com a pandemia da COVID-19, os recursos dos endowments têm sido fundamentais para financiar o desenvolvimento das vacinas, garantir equipamentos médicos e de proteção para profissionais de saúde e para aliviar os efeitos humanitários da COVID-19. Esse mecanismo é hoje um verdadeiro motor para o desenvolvimento das ciências e das artes em todo o mundo.